Farmacomicrobiómica ou o impacto dos medicamentos no microbiota

A farmacomicrobiómica é um campo científico emergente que explora as interacções complexas entre o nosso microbiota intestinal e os medicamentos que tomamos. A compreensão destas interacções é essencial para maximizar a eficácia dos tratamentos medicamentosos e minimizar os efeitos secundários.

A farmacomicrobiómica, um ramo emergente da ciência que se centra nas interacções entre o microbiota e os medicamentos, tornou-se cada vez mais importante para compreender a variabilidade das respostas dos doentes aos tratamentos medicamentosos. O microbiota intestinal, em particular, pode ativar, inativar ou modificar os medicamentos orais em metabolitos tóxicos. Este fenómeno bidirecional envolve não só alterações na composição do microbiota, mas também alterações na eficácia clínica dos medicamentos.

O que é a farmacomicrobiómica?

A farmacomicrobiómica é uma subdisciplina da farmacologia que estuda a interação entre o microbioma humano e os medicamentos (4). O microbioma é constituído por vários microrganismos, como bactérias, vírus e fungos, que residem em diferentes locais anatómicos do corpo, incluindo o trato gastrointestinal, a pele e o trato respiratório. Estes microrganismos podem ter um impacto significativo na eficácia e toxicidade dos medicamentos.

No contexto farmacológico, o microbioma pode afetar uma série de parâmetros, como a biodisponibilidade, o metabolismo e aeliminação de substâncias medicamentosas. Por exemplo, certas bactérias intestinais podem metabolizar um medicamento numa forma mais ativa ou, pelo contrário, numa forma menos eficaz. Estas interacções podem, portanto, aumentar ou reduzir a eficácia terapêutica do medicamento em questão.

A farmacomicrobiómica utiliza uma variedade de métodos, desde a metagenómica à espetrometria de massa, para caraterizar o microbioma e as suas interacções com os medicamentos. O objetivo é integrar estes dados no processo de desenvolvimento de novos medicamentos e de personalização dos tratamentos farmacológicos, a fim de otimizar a eficácia terapêutica e minimizar os efeitos secundários.

Farmacogenómica e farmacomicrobiómica: qual é a diferença?

No ecossistema em constante evolução da medicina personalizada, a farmacogenómica e a farmacomicrobiómica surgem como duas disciplinas que, embora intimamente relacionadas, têm focos e aplicações distintas. Ambas visam otimizar o tratamento medicamentoso tendo em conta as características individuais, mas fazem-no explorando domínios biológicos diferentes.

O que é a farmacogenómica?

A farmacogenómica é um ramo da genética que estuda a forma como os genes de um indivíduo influenciam a sua resposta aos medicamentos (5). Esta disciplina utiliza técnicas de sequenciação do ADN e de análise genómica para identificar as variações genéticas que podem explicar as diferenças de eficácia dos medicamentos e a suscetibilidade aos efeitos secundários. O objetivo é adaptar a escolha dos medicamentos e a dosagem aos perfis genéticos individuais, permitindo uma medicina mais orientada e menos propensa a efeitos adversos.

Farmacomicrobiómica

A farmacomicrobiómica incide sobre a interação entre o microbioma humano (o conjunto de microrganismos que residem no nosso corpo) e os medicamentos. Explora a forma como as variações na composição microbiana, particularmente no trato gastrointestinal, podem influenciar a absorção, o metabolismo e a eliminação de diferentes substâncias medicamentosas. O objetivo é integrar esta informação para melhorar a eficácia terapêutica e minimizar os efeitos secundários.

Pontos de divergência

O elemento-chave que distingue estas duas disciplinas é o seu objeto de estudo. A farmacogenómica centra-se no ADN humano e no seu impacto na resposta aos medicamentos, enquanto a farmacomicrobiómica estuda a influência do microbioma nestes mesmos parâmetros. Enquanto a farmacogenómica pode exigir uma única análise genética para estabelecer um perfil, a farmacomicrobiómica pode exigir análises mais frequentes, uma vez que o microbioma pode mudar em resposta a vários factores, como a dieta, a idade e a exposição a antibióticos.

Que medicamentos afectam o microbiota intestinal?

Nesta secção, vamos analisar os medicamentos que afectam o microbiota intestinal e porque é que isto é importante para a sua saúde.

Inibidores da bomba de protões (IBP)

Os IBP são amplamente prescritos para o tratamento de distúrbios relacionados com a acidez. No entanto, o seu uso crónico tem sido associado a alterações na composição do microbiota intestinal. Estudos demonstraram uma diminuição da diversidade bacteriana e alterações taxonómicas significativas, incluindo um aumento das famílias Enterobacteriaceae e uma diminuição das Ruminococcaceae. Estas alterações poderiam contribuir para infecções entéricas como o Clostridium difficile”(1).

Metformina

Utilizada principalmente para tratar a diabetes de tipo 2, a metformina parece também influenciar o microbiota intestinal. Estudos demonstraram alterações em mais de 80 espécies bacterianas (2), incluindo um aumento deEscherichia coli e uma diminuição deIntestinibacter. Estas alterações podem explicar em parte os efeitos terapêuticos da metformina, bem como alguns dos seus efeitos secundários gastrointestinais.

Impacto na resposta anti-tumoral e na imunoterapia

A composição do microbiota intestinal foi também associada à resposta antitumoral e à eficácia clínica dos tratamentos através da inibição dos pontos de controlo imunitário. Estudos demonstraram que as alterações na composição do microbiota podem influenciar a eficácia da imunoterapia no tratamento do cancro (3).

O impacto dos laxantes no microbiota intestinal

Para ter em conta as alterações microbianas induzidas pelos laxantes, é necessário ter em conta diversas variáveis, incluindo o tempo de trânsito intestinal, a consistência das fezes e a carga bacteriana por amostra. Estudos efectuados em modelos de ratos mostraram um aumento significativo das espécies de Bacteroides após a administração de polietilenoglicol (PEG). Esta modificação teve repercussões a longo prazo na composição do microbiota intestinal, afectando também as respostas imunitárias inatas e adaptativas. Além disso, a família S24-7 da ordem Bacteroidales foi totalmente substituída por uma proliferação da família Bacteroidaceae. Estas alterações eram permanentes, a menos que a família S24-7 fosse reintroduzida (6).

Influência bidirecional do microbiota nos medicamentos

Enquanto a farmacogenómica estuda os efeitos das variações do genoma humano na disposição e ação dos medicamentos, a farmacomicrobiómica está a emergir como uma extensão natural. Esta disciplina tem por objetivo compreender de que forma o microbiota intestinal, muitas vezes referido como o“segundo genoma humano“, pode influenciar a bioatividade, a biodisponibilidade e a toxicidade dos medicamentos.

Mecanismos sugeridos para o impacto dos fármacos no microbiota

Foram propostos dois mecanismos principais para explicar a forma como os medicamentos podem influenciar a composição do microbiota. O primeiro é a translocação do microbiota de outros locais do corpo para o intestino. Por exemplo, os inibidores da bomba de protões (IBP) reduzem a barreira ácida do estômago, permitindo que os micróbios orais passem para o trato intestinal. O segundo mecanismo sugere que os medicamentos podem afetar diretamente o crescimento bacteriano, modificando os microambientes intestinais.

Mecanismos do impacto microbiano na eficácia e segurança dos medicamentos

Estudos demonstraram que os micróbios intestinais podem transformar a estrutura enzimática dos medicamentos, afectando assim a sua bioatividade. Por exemplo, o medicamento antiviral oral brivudina é metabolizado em bromoviniluracilo pelo microbiota, resultando em toxicidade hepática. Esta transformação metabólica pode ser atribuída a espécies específicas, como Bacteroides thetaiotaomicron e Bacteroides ovatus (7).

O impacto das estatinas no microbiota

As estatinas inibem a enzima 3-hidroxi-3-metilglutaril coenzima A redutase (HMG-CoA redutase), que está envolvida na biossíntese do colesterol. Esta enzima está presente não só no ser humano, mas também em certos organismos bacterianos, como o Enterococcus faecalis e o Enterococcus faecium.

Interacções complexas

As interacções entre as estatinas, o metabolismo dos ácidos biliares, a síntese do colesterol e o microbiota intestinal são complexas e foram objeto de numerosos estudos recentes. Espécies específicas de microbiota, incluindo estirpes probióticas bem estudadas, como Lactobacillus e Bifidobacterium, são fontes cruciais de um grupo de enzimas conhecidas como hidrolases de sais biliares (BSHs).

Metabolismo dos sais biliares

Os sais biliares, sintetizados a partir do colesterol pelo fígado, são metabolizados pelo microbiota intestinal numa variedade de derivados de sais biliares. Estes derivados são depois reabsorvidos e novamente metabolizados pelo fígado, gerando uma grande variedade de sais biliares complexos que ajudam a digestão e podem oferecer proteção contra organismos nocivos como o Clostridium difficile.

Os potenciais efeitos das estatinas no microbiota

Devido à correlação inversa entre as concentrações de colesterol LDL e os ácidos biliares circulantes, foi levantada a hipótese de que o efeito de redução do colesterol das estatinas pode estar ligado à atividade de bactérias que contêm BSH, como os Lactobacillus. Um ensaio clínico aleatório e controlado por placebo envolvendo 127 participantes (8) mostrou que o tratamento com o probiótico Lactobacillus reuteri reduziu significativamente os níveis de colesterol LDL.

A aspirina, o café e o microbiota intestinal

É interessante notar que o café, uma bebida consumida diariamente por muitas pessoas, pode afetar significativamente o microbiota intestinal. Um estudo prospetivo (9) mostrou que o extrato de grãos de café alterava a biodiversidade do microbiota intestinal. Esta alteração reflecte-se num aumento dos organismos Lactobacillaceae e Muribaculaceae e numa redução das concentrações de Proteobacteria, Helicobacteriaceae e Bacteroidaceae.

Biodisponibilidade da aspirina

O mesmo grupo de investigação avaliou igualmente as concentrações sanguíneas de aspirina em ratinhos e homens adultos tratados com uma combinação de extrato de grãos de café e aspirina. O microbiota intestinal hidrolisa normalmente a aspirina numa forma ionizada, menos suscetível de ser absorvida no intestino. No entanto, o extrato de café em grão inibe a atividade de certos micróbios intestinais, o que resulta num aumento das concentrações da forma não ionizada e, por conseguinte, altamente biodisponível do medicamento. É importante sublinhar que este aumento absoluto da absorção é, no entanto, muito reduzido.

A aspirina é uma cura para o cancro?

Para além das suas utilizações cardiovasculares, a aspirina poderia também ter um efeito protetor contra o cancro colorrectal, modulando a flora intestinal. Um ensaio aleatório controlado realizado por Prizment e colaboradores em 50 pacientes mostrou que uma toma de aspirina de 6 semanas estava associada a um aumento do número de organismos Akkermansia (10). Os organismos Akkermansia foram associados a uma melhor sobrevivência e a respostas imunitárias anti-cancro em pacientes com cancro colorrectal. Além disso, a aspirina reduziu as concentrações de espécies Parabacteroides e Dorea, que estão geralmente aumentadas nestes doentes.

Como é que os medicamentos influenciam o microbiota intestinal?

A exploração das interacções entre o microbiota intestinal e os diferentes medicamentos não antibióticos abre novas perspectivas para a otimização dos cuidados de saúde. É cada vez mais evidente que estes medicamentos, que vão dos inibidores da bomba de protões aos antidepressivos, podem ter um impacto significativo na composição e na função do microbiota intestinal. Esta interação não é unilateral; com efeito, as alterações do microbiota intestinal podem, por sua vez, afetar a eficácia dos medicamentos, alterando mesmo a sua biodisponibilidade e toxicidade.

Os mecanismos subjacentes a estas interacções são complexos e envolvem, por exemplo, alterações na resistência à colonização intestinal, que podem favorecer infecções como o Clostridium Difficile. Além disso, o impacto do microbiota na eficácia dos tratamentos anticancerígenos, nomeadamente os inibidores do ponto de controlo imunitário, acrescenta uma nova camada de complexidade e importância clínica.

Os médicos precisam de integrar este conhecimento na sua prática, uma vez que já não se trata apenas do efeito dos antibióticos no microbiota intestinal. Os medicamentos não antibióticos também têm um papel a desempenhar e podem ter um impacto na saúde. O domínio emergente da farmacomicrobiómica oferece oportunidades interessantes para o futuro, incluindo a modulação orientada do microbiota para melhorar a eficácia dos tratamentos. Estão atualmente em curso ensaios clínicos e os dados que estes geram influenciarão, sem dúvida, as futuras orientações clínicas.

Este conjunto de conhecimentos em rápida expansão sugere uma reavaliação iminente dos protocolos clínicos actuais e é um bom augúrio para intervenções terapêuticas mais personalizadas e eficazes num futuro próximo.

Fonte:

  1. (1) http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28629876
  2. (2) http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26633628
  3. (3) http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/29097493
  4. (4) https://www.larevuedesmicrobiotes.fr/numeros/numero-19-microbiotes-reponse-aux-traitements-et-metabolisme-des-medicaments
  5. (5) https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7145132/
  6. (6) http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/30858400
  7. (7) http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/30733391
  8. (8) https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22990854/
  9. (9) https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35456580/
  10. (10) https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32770859/

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