A mirra, um tesouro vegetal milenar, continua a cativar o mundo com as suas propriedades únicas e a sua história fascinante. Este artigo explora as muitas facetas desta preciosa resina, desde a sua extração botânica até às suas utilizações antigas e modernas.
Extraída da árvore Commiphora myrrha, um membro da família Burseraceae, a mirra é obtida a partir da goma-resina que escorre da sua casca. Uma vez dissolvida e destilada, esta substância revela um óleo essencial com um odor pungente, carregado de história e de simbolismo.
Desde a Antiguidade até aos nossos dias, a mirra foi utilizada ao longo dos tempos e por diferentes civilizações. Desde os rituais religiosos egípcios até às práticas medicinais da Grécia antiga, a mirra foi um elemento fundamental em várias culturas. A sua história está intimamente ligada à da religião cristã, onde é mencionada em numerosos textos sagrados, incluindo a Bíblia.
A mirra tem também uma dimensão mitológica e cultural. Segundo a mitologia grega, simboliza as lágrimas de Hórus e tem mesmo uma origem divina, estando ligada à deusa Afrodite. Esta resina perfumada era utilizada pelos gregos para aromatizar o vinho, o que ilustra o seu papel na vida quotidiana e nas cerimónias.
Mas para além da sua rica história, a mirra possui propriedades farmacológicas notáveis. Anti-inflamatória, analgésica e antimicrobiana, os seus efeitos na saúde são diversos e suscitaram um interesse médico crescente. Atualmente, o óleo essencial de mirra está a ser estudado pelas suas múltiplas aplicações potenciais, desde a melhoria da saúde oral até à luta contra certos tipos de cancro.
Este artigo descreve igualmente as modalidades de utilização da mirra e as precauções a tomar, nomeadamente no que diz respeito à sua utilização em aromaterapia e em medicina natural. Por fim, exploraremos os progressos científicos e os estudos clínicos recentes que evidenciam a importância e a pertinência da mirra no contexto médico atual.
História da mirra
Descritos como drogas preciosas, a mirra e o incenso são usados parafumigação, embalsamamento luxuoso, unção e outros rituais litúrgicos, aparecendo em papiros, nos Vedas, no Corão e em muitos outros escritos importantes.
Um pouco de mitologia grega
Embora, de acordo com a mitologia grega, os egípcios vissem a mirra como símbolo das lágrimas deHórus, a mirra nasceu da relação incestuosa de Mirra com o seu pai Ciniro. Foi a deusa Afrodite que, ciumenta da beleza da jovem rapariga, lhe insuflou a ideia inepta do incesto. Quando o pai se apercebeu do erro, foi atrás dela para a matar. Implorando aos deuses que a poupassem, transformaram-na numa árvore de mirra, com lágrimas de resina perfumada.
Os gregos fizeram grande uso da mirra, utilizando-a mesmo para perfumar o seu vinho. Poseidon é associado ao fumo da mirra na oração que lhe é dedicada nos Hinos Órficos.
Do outro lado do Mediterrâneo, os gregos também davam grande valor à mirra. Tal como fazem ainda hoje com a retsina, um vinho branco misturado com resina de pinheiro, misturavam mirra no vinho. Demócrito menciona a existência, no século V a.C., de hermesias, uma mistura de açafrão, mel, pinhões esmagados, leite e vinho de palma. Era recomendada “para ser bebida antes da procriação, após a conceção e pelas mães que amamentavam, a fim de produzir filhos notáveis pelos seus dons espirituais e beleza”
Na religião cristã
Árvore sagrada mencionada na Bíblia, tal como o incenso, a mirra era dada pelos romanos aos torturados para aliviar o seu sofrimento. A mirra era queimada em incensários pelos Egípcios, Gregos, Romanos e Cristãos. Era utilizada para embalsamar cadáveres e fazer múmias. O Senhor tinha dado a Moisés a fórmula dos perfumes sagrados a queimar nos templos. Os Magos ofereceram lágrimas de mirra ao Menino Jesus.
Habitualmente queimada durante os serviços religiosos para honrar as divindades, a mirra brilha no Cântico dos Cânticos, onde é mencionada nada menos que sete vezes! Parece estar fortemente carregada de erotismo, como sugere a seguinte passagem: “O meu amado é um saquinho de mirra que repousa entre os meus seios” Sabendo que a mirra é um anafrodisíaco, é provavelmente uma boa ideia não tomar esta alegação à letra, mas antes vê-la como uma referência ao amor de Cristo, mesmo que isso seja duvidoso. No entanto, o Grande Papiro Mágico de Paris fala da mirra num sentido bastante semelhante, quando diz: “Tu és mirra, mirra amarga, mirra forte [não confundir com mirra doce, isto é, bdellium ou opopanax], aquela que pacifica os combatentes, tu que secas e obrigas a amar aqueles que não conhecem Eros “..
Algumas pessoas descrevem o perfume do óleo essencial de mirra como tendo um “cheiro a hospital”, o que não é desmentido pela atmosfera ligeiramente “fresca”, se não mesmo “fria”, que pode produzir quando fumigado, bem como pelo cheiro a cogumelos, a vegetação rasteira e a húmus deste óleo essencial. Apesar disso, a mirra, talvez mais do que o incenso, é verdadeiramente o óleo do místico, suscitando a meditação, a contemplação e a admiração religiosa.
Na Antiguidade
No tempo do Egipto faraónico, as lágrimas de mirra eram tão procuradas que funcionavam como moeda de troca, nomeadamente em troca de pedras preciosas. Os antigos acreditavam que elas tinham poderes sobre os corpos etérico e astral.
A rainha de Sabá foi também uma comerciante muito próspera de óleo essencial de mirra, mais de mil anos antes da nossa era.
Há cerca de trinta e cinco séculos, a rainha egípcia Hatshepsut organizou expedições à costa da Somália para importar ouro, ébano, marfim e animais, mas sobretudo mirra, a goma resinosa que pode exsudar naturalmente de um pequeno arbusto vulgarmente conhecido como árvore da mirra.
A história da mirra é tão antiga como a do incenso. Os egípcios conheciam-na há quatro milénios e utilizavam-na como um dos ingredientes do kyphi. Era também utilizada no embalsamamento. Segundo Heródoto, o jovem Fénix embalsamou o corpo do seu pai num ovo de mirra.
No antigo Egipto, a mirra era ritualmente incinerada todas as noites e fazia parte integrante da composição do kyphi, um perfume egípcio sagrado. Segundo Plutarco, esta mistura complexa era composta por dezasseis ingredientes diferentes: mel, vinho, uvas, noz-moscada, resina, mirra, aspalatos, seselis, lentisco, betume, junco e paciência, aos quais se juntavam bagas de zimbro, cardamomo e cálamo. Os ingredientes não eram misturados ao acaso, mas de acordo com receitas sagradas que eram lidas aos perfumistas durante a preparação
Os efeitos antifúngicos e bactericidas da mirra eram também de grande interesse para os embalsamadores egípcios. A matéria vegetal contida na mirra desempenhava um papel crucial nos rituais de embalsamamento egípcios, impregnando abundantemente as tiras utilizadas. Dada esta estreita associação com a morte, não é de estranhar que os egípcios privilegiassem a mirra como agente de embalsamamento, prática confirmada pela presença posterior desta substância em numerosos sarcófagos. A mirra está, portanto, ligada “à energia nocturna, às trevas e à morte, pois era utilizada para embalsamar os mortos, a fim de assegurar a sua vida eterna na terra do sol poente”
Além disso, os egípcios, quando celebravam os seus mortos em banquetes, esfregavam-lhes no couro cabeludo um unguento perfumado com mirra, enquanto os hebreus a misturavam com vinho para obter uma bebida sedativa que era administrada aos moribundos para aliviar o seu sofrimento.
Este simbolismo mortuário encontra eco na imagem da fénix, que “usa a mirra e o incenso […] para construir o seu ninho, e até os transporta, antes de se queimar na pira que ergueu, amontoando substâncias perfumadas de toda a espécie”
Na Idade Média
Na medicina grega do século I, Dioscórides recomendava a aplicação de uma mistura de mirra e vinagre nas têmporas e na cabeça para combater as dores. Na medicina árabe-persa, Rhazes (século X) recomenda-a para as afecções dos rins e da bexiga, para as dores do ventre e das articulações e para expulsar os vermes intestinais. Avicena (século XI) afirma que cura as feridas que sangram, evita a putrefação e alivia a dor. Misturado com leite, pode ser utilizado como colírio para tratar as úlceras da córnea(Ibn al-Baytar, século XIII).
Do Renascimento à atualidade
Em França, é conhecida pelas suas propriedades balsâmicas, emenagogas, estimulantes e antiespasmódicas. É utilizada para tratar as afecções da boca e da garganta. Foi utilizada na composição de medicamentos como o alcoolato de Garrus e Fioraventi ou a tintura balsâmica (Codex 1937).
Desde a Renascença, a mirra é destilada paraproduzir perfumes.
Embora a utilização terapêutica da mirra tenha caído em relativo desuso, o facto é que ela gozou durante muito tempo do estatuto de que hoje goza.
Quais são as propriedades farmacológicas do óleo essencial de resina de mirra amarga?
Efeitos anti-inflamatórios, analgésicos e antioxidantes:
A resina tem uma ação anal gésica comparável à da morfina no teste da placa quente e no teste da contorção; o furanoeudesma-1,3-dieno e a curzerenona, isolados da resina, ligam-se sobretudo aos receptores opióides e são, por conseguinte, os princípios activos doefeito analgésico importante.
Anti-inflamatório, o óleo essencial de mirra bloqueia a interleucina 1.
Efeito antimicrobiano:
Os sesquiterpenos têm atividade antibacteriana contra agentes patogénicos como Staphylococcus aureus, Pseudomonas aeruginosa e Escherichia spp. Têm também propriedades antifúngicas eficazes contra a Candida albicans. O óleo essencial é antiviral.
Outros efeitos:
- Tem um efeitocalmante e é endócrino
- Semelhanteàs hormonas (modulador da tiroide, anafrodisíaco)
- Anti-degenerativo
- Esclerosante
- Imunoestimulante (vírus)
- Ajuda aacelerar o processo de cicatrização da pele
- Ação central sobre os ritmos :
- Reordenação
- Reestruturação interna (física, biológica, imunitária, emocional e psicológica)
- Harmoniza o sistema nervoso central
- Propriedades anti-cancerígenas de numerosos derivados (sesquiterpenos)
Devem ser tomadas precauções aquando da utilização do óleo essencial de mirra amarga?
- Apenas para adultos
- Não recomendado para mulheres grávidas ou a amamentar
- Não ingerir!
- Óleo essencial citotóxico mas não genotóxico
- Não difundir ou inalar (exceto por inalação húmida)
- Não utilizar para uso interno
- Interacções medicamentosas com óleos essenciais que contenham mais de 10% de cetonas ou fenóis
- Precaução em patologias dependentes de hormonas
Literatura médica e ensaios clínicos:
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